Os números do primeiro trimestre das operadoras de planos de saúde colocam em xeque o cenário que vem sendo desenhado pelas empresas de que há uma crise setorial. Os lucros das operadoras de planos médicos hospitalares mais do que dobraram em relação ao primeiro trimestre do ano passado: R$ 6,9 bilhões contra R$ 3,1 bilhões, mostra o Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar, divulgado nesta terça-feira pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O lucro operacional, que exclui os ganhos financeiros, também mais do que dobrou, foi de R$ 4,4 bilhões, ante a R$ 1,87 bilhões registrados no mesmo período do ano passado. Somando o resultado de planos odontológicos e administradoras de benefícios, o setor teve um lucro de R$ 7,1 bilhões.
Os custos dos planos de saúde com a judicialização em 12 meses, encerrados em março, foram equivalentes a 1,23% das receitas provenientes das mensalidades, totalizando R$ 3,9 bilhões. Divulgados pela primeira vez pela ANS, os dados das despesas das operadoras com a Justiça mostram ainda que 62,4% das ações são relativas ao descumprimento do contrato. Os números compilados pela agência reguladora foram informados pelas próprias empresas e põe por terra o argumento que têm repetido à exaustão de que, ao ir à Justiça, o consumidor estaria colocando em risco a sustentabilidade do setor. Nota publicada pela Comissão de Direito Médico e de Saúde da OAB SP, nesta segunda-feira, aponta que a situação é bem diferente ao denunciar o descumprimento sistemático de decisões judiciais por operadoras de planos de saúde.
– Tudo está melhorando, resultado operacional, financeiro, lucro líquido. Os dados não apontam nenhuma crise setorial, é lógico que há empresas com problemas, mas esse percentual está caindo. A demonstração financeira mostra que as empresas estão com dinheiro em caixa, são R$ 128 bilhões, 50% em recursos livres de exigência da ANS, o que poderia ser reduzido em caso de crise dos planos, mas tem se mantido – ressalta Jorge Aquino, diretor de normas e habilitação das operadoras da ANS.
A sinistralidade – que é a relação entre as despesas com a assistência aos usuários e a receita com mensalidades – caiu, voltando a patamar pré-pandemia. O menor percentual é registrado entre as grande operadoras, 74,4%. Os planos de autogestão – que se caracterizam por estar ligado a uma empresa e categoria e não terem fins lucrativos – registraram o pior resultado, com uma sinistralidade de 93,3%, o que mostra o desequilíbrio na operação, provocado principalmente, diz Aquino, pelo envelhecimento da clientela.
– A redução na sinistralidade do setor é efeito dos reajustes mais altos que têm sido implementados pelas empresas nos últimos dois anos – avalia o diretor.
No entanto, o aumento das reclamações de consumidores à ANS e os dados da despesa judicial poderiam ser entendidos como uma estratégia para dificultar acesso à assistência e melhorar resultados? O diretor admite que esse é um “raciocínio que se apresenta”, mas pondera:
– Pode-se incorrer em injustiça. Não acredito que as empresas estejam deliberadamente negando procedimentos previstos em contrato. Mas há problema de gestão, com certeza – afirma Aquino.
Segundo nota publicada pela OAB-SP, “advogados e advogadas que atuam na defesa dos pacientes convivem, cotidianamente, com o desrespeito às decisões que conquistam judicialmente — enfrentando, além da barreira jurídica, a perda da confiança da população no Direito e na Justiça.”
– A profundidade do fosso entre operadoras e usuários está se tornando intransponível. Inclusive os dados evidenciam a existência objetiva de mecanismos abusivos de restrição de acesso por parte de empresas do setor suplementar. Essas informações acendem um sinal de alerta, já passou da hora de instituições governamentais hesitarem, se omitirem em relação a uma regulação adequada de preços e garantias de cobertura – diz a médica Lígia Bahia, do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ.
A OAB SP chama atenção para o crescimento das Notificações de Intermediação Preliminar (NIPs), mecanismo de mediação de conflito da ANS. Dados da agência reguladora mostram que as queixas relativas a descumprimento de cobertura assistencial saltaram de 91.875, em 2019, para 301.893. Este ano, até abril, já foram registradas 86.969 queixas sobre esse tema.
Marina Paulelli, coordenadora do programa de saúde do Idec, afirma que com bastante frequência, a sustentabilidade econômica é utilizada como argumento pelas empresas para justificar o que considera práticas abusivas aos consumidores.
– Isso acontece especialmente no âmbito de planos de saúde coletivos, caracterizados por altos reajustes e rompimentos imotivados. Os dados recentes divulgados pela ANS indicam que, na prática, os supostos riscos econômicos não se verificam. O mesmo vale para a judicialização. A judicialização é reflexo de graves práticas de mercado, que merecem atenção tanto da agência reguladora, que deve superar lacunas normativas, quanto do Poder Judiciário, que deve se atentar ao descumprimento da lei pelas empresas – destaca a advogada.
Em nota a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) avalia que a recuperação do setor atestada pelos dados econômico-financeiros do primeiro trimestre de 2025 é positiva para o sistema e destaca que o lucro de R$ 6,9 bilhões representa uma margem de lucro de 8,6% no trimestre. Nos últimos 12 meses, diz a entidade, a margem é mais estreita, de 4,4%.
A FenaSaúde ressalta ainda que desde a pandemia, o o retorno sobre o patrimônio (ROE) do setor tem sido 6,4 pontos percentuais menor do que o registrado nos cinco anos anteriores. No período pré-pandemia, informava, ficava em torno de 15%.
Em relação as despesas judiciais a Fenasaúde faz um cálculo diferente da ANS. No painel, a agência correlaciona as despesas de judicialização com as receitas obtidas pelas empresas com as mensalidades, o que resulta num percentual de 1,23%. Já a federação faz a conta comparando com o lucro líquido do setor nos últimos 12 meses. Os R$ 3,9 bilhões com custos judiciais representam 27% do lucro líquido das operadoras no período que foi de R$ 14 bilhões.
A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) ainda não respondeu ao blog.