Avaliada pelas operadoras como uma forma de ampliar o setor — estagnado em pouco mais de 50 milhões de usuários há dez anos — a proposta da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que cria um plano de saúde só para consultas e exames entrou em compasso de espera no fim de maio. Uma câmara técnica vai avaliar aspectos do projeto, que deixa de fora da cobertura atendimentos de urgência e internação e que suscita discussões: um plano de saúde mais restrito faz sentido? Quais os prós e contras?
O modelo simplificado — e mais barato — foi proposto pela ANS em fevereiro. Para a agência, a medida pode ampliar o acesso dos brasileiros ao setor. O órgão argumenta que o público-alvo são consumidores sem plano de saúde tradicional, que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), mas que acessam serviços pagos, oferecidos por clínicas populares e cartões de desconto.
A visão da ANS é compartilhada pelas operadoras, que avaliam que esse novo tipo de contrato representa uma oportunidade para expandir e disputar o espaço ocupado por cartões de desconto. Sem regulação, nesse serviço o usuário paga mensalidade que garante descontos em consultas e exames laboratoriais.
O número de usuários desse mercado é uma incógnita. Algumas projeções falam em 40 milhões de pessoas, enquanto a própria ANS já estimou que são 60 milhões de consumidores, 8 milhões a mais que os 52 milhões cobertos por planos de saúde regulados.
Cartões de desconto
CEO da consultoria Eloss, de estratégia em saúde para operadoras e empresas empregadoras, Luciane Infanti avalia que há sinais de que esse setor vem crescendo.
A empresa cruzou dados da ANS, da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2019, ambas do IBGE e últimas edições disponíveis, e informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad, também do IBGE) e concluiu que há “evidente comprometimento” do orçamento das famílias mais pobres com gastos privados em saúde.
Para ela, isso é impulsionado pela procura por serviços de clínicas populares e seus cartões de desconto.
O cruzamento mostra que, dos 81,2 milhões de brasileiros da Classe C, 34% são dependentes exclusivamente do SUS, enquanto 20% têm plano de saúde e 46% recorrem a atendimentos privados, mas fora das operadoras.
Luciane cita ainda estimativas apuradas pela Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), que calculam que, em 2023, as despesas com saúde privada no Brasil movimentaram R$ 578,03 bilhões.
Do total, R$ 275,27 bilhões foram pagos a planos de saúde por famílias e empresas, enquanto um valor superior, de R$ 302,76 bilhões são custeios de outras despesas, como medicamentos, atendimentos particulares e, segundo Luciane, possivelmente, cartões de desconto.
A especialista avalia que o crescimento desse segmento aponta interesse maior das famílias em produtos privados em saúde com preços mais acessíveis:
— A gente precisa ampliar o portfólio de produtos possíveis para as pessoas. Quem busca cartão de desconto quer ter serviço diferenciado quando precisa. Ter produto regulado, pré-pago, que dê garantia de acesso ao cuidado básico pode fazer sentido para algumas famílias, e o modelo de assinatura desses cartões não garante isso, só reduz preço.
27,6 milhões de informais não têm plano pela empresa
Outra frente apontada pela consultora é a possibilidade de planos simplificados atenderem os 27,6 milhões de trabalhadores formais que não têm plano de saúde como benefício do emprego, como aponta cruzamento feito por ela com números da ANS e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
— Sei que há preocupação com downgrade (quando empresas rebaixam benefícios dos funcionários), mas pode ser opção para empregadores que ainda não oferecem plano de saúde a empregados, ou para um trabalhador informal que não consegue pagar.
Além de ampliar o acesso a planos de saúde, a ANS argumenta que o plano com cobertura para consultas e exames pode desafogar a fila do SUS na atenção primária, ampliando diagnósticos precoces.
Demora para exames
A demora no agendamento de exames, cirurgias ou consultas com especialistas é o principal problema da saúde pública para 42% dos brasileiros, aponta pesquisa recente do Instituto Locomotiva. O estudo ouviu 2,5 mil pessoas em todo o país e constatou que só 16% avaliam o SUS positivamente.
A pesquisa aponta que, por conta da demora das filas, 7% declaram possuir cartões de desconto, cerca de 11 milhões de pessoas. O número de usuários, porém, é provavelmente muito maior, já que o cartão atende um núcleo familiar.
— Como eu resolvo isso? Com parcerias público-privadas. Uma delas é poder ter um plano exclusivamente ambulatorial. E isso já existe, mas as pessoas estão pagando muito mais caro com os cartões de saúde, que oferecem apenas desconto, sem uma cobertura ilimitada para consultas — defende Renato Meirelles, presidente do Locomotiva, citando que 76% dos ouvidos avaliam que parcerias com o setor privado seriam benéficas.
A pesquisa perguntou aos entrevistados especificamente sobre o produto simplificado desenhado pela ANS: 24% disseram ter muito interesse, 37% ter algum interesse e 39% rejeitaram a ideia.
Com a previsão de que o plano proposto cubra apenas atendimentos básicos, quem precisar de atendimentos mais complexos, como uma biópsia de tumor, uma cirurgia ou até quimioterapia, vai precisar pagar do próprio bolso ou recorrer ao SUS.
A proposta da ANS tem o risco de sobrecarregar os já pressionados atendimentos de média e alta complexidade do sistema público, “que são o grande gargalo do SUS”, avalia Rudi Rocha, professor da FGV EAESP e diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps).
Além disso, o SUS não é obrigado a aceitar exame do setor privado. Logo, caso a proposta da ANS de um plano limitado vingue e o paciente que aderiu a esse tipo de produto precise fazer algum procedimento no SUS que não é coberto pelo plano, ele terá que entrar na fila como qualquer outro cidadão que busca atendimento na rede pública.