Nos últimos anos, o aumento expressivo do número de ações judiciais envolvendo o seguro viagem tem gerado debates importantes sobre os limites da responsabilidade das seguradoras e a correta interpretação dos contratos firmados com os consumidores. O crescimento do turismo internacional e a popularização da contratação digital contribuíram para um ambiente de alta judicialização, muitas vezes, sem a devida análise técnica da natureza jurídica do contrato de seguro e dos riscos efetivamente garantidos.
É importante, de início, delimitar a distinção jurídica entre o seguro viagem – regulado pela Susep – Superintendência de Seguros Privados e definido como contrato de seguro nos termos do art. 757 do Código Civil – e os serviços de assistência em viagem, comumente ofertados por empresas não supervisionadas e fora do escopo da legislação securitária brasileira. Essa diferenciação é fundamental, pois em grande parte das ações judiciais, o que se busca é a responsabilização da seguradora por serviços não contratados ou por falhas de terceiros sem vínculo contratual com a seguradora legítima.
No que se refere ao seguro viagem devidamente regulamentado, a apólice delimita com clareza os riscos cobertos, o valor máximo de indenização e as hipóteses de exclusão, cláusulas que devem ser interpretadas conforme os princípios da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil) e da função social do contrato (art. 421), mas sempre observando o equilíbrio contratual. A interpretação extensiva ou ilimitada das obrigações securitárias, sob o argumento genérico de proteção ao consumidor, pode comprometer não apenas o pacto firmado entre as partes, mas também a própria lógica atuarial que sustenta o sistema de seguros.
A jurisprudência tem oscilado entre decisões que reconhecem a limitação contratual válida e outras que ampliam o alcance da cobertura, mesmo diante de cláusulas expressas de exclusão. Em casos extremos, há decisões que responsabilizam seguradoras por eventos ocorridos fora da vigência contratual, em países não incluídos na cobertura, ou ainda por despesas incompatíveis com o objeto do seguro, como tratamentos eletivos, eventos preexistentes ou atendimentos sem autorização prévia, quando esta era condição expressa para o reembolso.
Outro aspecto preocupante é a crescente aplicação da teoria da vulnerabilidade absoluta do consumidor, muitas vezes de forma automática, sem apuração efetiva da conduta das partes. É imprescindível lembrar que o CDC (lei 8.078/1990), embora aplicável ao contrato de seguro, não elimina o dever de cooperação do segurado, que deve prestar informações completas no momento da contratação e respeitar os deveres estabelecidos na apólice. A omissão dolosa de doença preexistente, por exemplo, não pode ser desconsiderada com base unicamente na hipossuficiência presumida do consumidor.
Do ponto de vista das seguradoras, o cenário exige uma atuação preventiva e documental robusta. A oferta digital deve garantir clareza nas informações pré-contratuais, meios acessíveis de atendimento e canais formais de autorização de uso do seguro. Por outro lado, é preciso que o Judiciário reconheça os limites jurídicos da mutualização de riscos, sob pena de transformar o seguro em instrumento de ressarcimento irrestrito, alheio à lógica contratual e à viabilidade econômica do setor.
O seguro viagem, por sua própria natureza, envolve riscos delimitados, valores máximos de cobertura e condições de acionamento. Qualquer distorção dessa estrutura compromete a previsibilidade contratual e transfere ao setor securitário responsabilidades que extrapolam os princípios que regem o contrato de seguro. A defesa técnica das seguradoras, portanto, passa não apenas pela discussão jurídica de cada caso concreto, mas pela reafirmação institucional do equilíbrio necessário entre proteção do consumidor e segurança jurídica.