A proposta da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de criar um ambiente regulatório experimental para a comercialização de planos de saúde com cobertura reduzida – os chamados planos simplificados – apresenta falhas importantes, que precisam ser sanadas antes da oferta do produto no mercado. É o que defende o Ministério Público Federal (MPF) em nota técnica elaborada pela Comissão de Saúde da Câmara do Consumidor e da Ordem Econômica (3CCR).
O documento, encaminhado à Presidência da ANS, analisa a proposta de resolução normativa que pretende instituir regras temporárias para permitir a operação de planos de saúde que ofereçam apenas consultas eletivas e exames, sem que os usuários tenham direito a atendimento de emergência, internação, terapias, entre outros serviços oferecidos pelos planos tradicionais.
Os planos simplificados buscam atender a uma parcela da população que não consegue arcar com os custos dos planos tradicionais. Seriam uma alternativa aos chamados cartões de serviço de saúde, modalidade já questionada no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A baixa burocracia para adesão e a possibilidade de contratação direta a preços baixos são alguns dos atrativos do produto, que ainda carece de regras definidas.
Visando suprir essa lacuna, a ANS propôs a criação de um ambiente regulatório experimental. A prática conhecida como sandbox regulatório permite que as empresas operem com regras diferentes por um tempo limitado, de modo a possibilitar inovações no mercado, em sistema de testagem do novo produto.
Falta de estudos – De acordo com o MPF, no entanto, a proposta da agência reguladora apresenta uma série de problemas que podem ser prejudiciais aos usuários de planos de saúde. Em primeiro lugar, não foi realizada a Análise de Impacto Regulatório (AIR) para medir as repercussões e o alcance do experimento, que pode afetar até 10 milhões de brasileiros diretamente.
Além disso, a operação desses planos restritos implicaria flexibilizar regras relativas a temas sensíveis, como cobertura assistencial, reajustes de mensalidades, coparticipação, portabilidade, entre outros, o que demanda uma análise técnica adequada das repercussões regulatórias.
A nota técnica destaca que a modalidade não está prevista na lei que regulamenta os planos de saúde (Lei 9.656/1998) e não deve, portanto, ser comercializada como tal. Até porque os cartões de saúde ou planos simplificados não estão sujeitos às regras de garantia de cobertura obrigatória, prazos máximos de atendimento, reajustes controlados e normas de cancelamento.
Nesse sentido, o MPF sugere que a agência constitua um regramento distinto e provisório para tratar dos agentes regulados, dos regimes de oferta e contratação, das coberturas oferecidas, das garantias e capital regulatório, das nomenclaturas a serem utilizadas no mercado e demais componentes dos planos populares, como forma de proteger o consumidor.
Impactos sobre o SUS – Outro problema apontado pelo MPF é a falta de participação de representantes do Ministério da Saúde e do SUS nas discussões. Segundo destacado por especialistas em audiências públicas que antecederam a elaboração da proposta, a criação dos planos de saúde limitados pode onerar ainda mais o Sistema Único de Saúde em vez de desafogá-lo.
Os planos de saúde restritos podem comprometer a coordenação e a integralidade do cuidado para os pacientes, que transitariam entre o setor privado com cobertura limitada e o SUS para atendimento de necessidades não cobertas pelo plano, gerando novas filas para serviços de média e alta complexidade. Serviços de média e alta complexidade demandam mais investimento do que o atendimento primário, com possíveis impactos no orçamento do SUS.
Qualidade dos serviços – A nota técnica também aponta que não há estudos para dimensionar o impacto dos planos populares sobre os milhões de brasileiros que já utilizam planos de saúde integrais. Segundo o MPF, um primeiro risco é de que essas pessoas migrem dos planos completos para os restritos, onerando ainda mais o SUS.
De outro lado, há a possibilidade de que as empresas passem a oferecer modalidades populares para seus funcionários em razão do custo mais baixo. “Esse movimento pode levar a um rebaixamento geral da qualidade dos serviços no sistema de saúde como um todo”, alerta o documento.
De acordo com o MPF, um estudo técnico adequado poderia mapear também possíveis riscos para a concorrência na criação do novo produto. O mercado de saúde suplementar do Brasil é composto por 52 milhões de pessoas, e as onze maiores operadoras de saúde detêm 41,52% dos beneficiários. “O impacto para o ambiente concorrencial justifica a participação da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda ou do Cade para avaliar a necessidade de restrições comportamentais ou estruturais aos agentes econômicos”, sustenta a nota.
A proposta da ANS deve prever também regras claras para as empresas que vão participar do experimento, incluindo possibilidades de saída e impactos para os consumidores que aderirem à modalidade experimental.
Considerando todos esses aspectos, o MPF entende que a agência precisa reformular a proposta e reabrir as discussões com o Ministério da Saúde. “O (re)estudo aprofundado poderá conferir uma proteção mais adequada aos 52 milhões de brasileiros que atualmente possuem planos de saúde, bem como demonstrará como a interconexão com o SUS atenderá ao interesse público e à eficiência”, conclui o documento.