Pacientes com diagnósticos que demandam mais cuidados como autistas, pacientes oncológicos, cardíacos e idosos fazem parte de uma fatia da população que mais sofre com a chamada rescisão unilateral — ou cancelamento — por parte de alguns planos de saúde. Quase 300 mil contratos foram cancelados no País nos últimos dois anos, segundo o Ministério da Justiça, com base no levantamento feito com sete operadoras atuantes no Brasil.
Nos primeiros meses do ano passado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) recebeu 5.888 reclamações sobre rescisões unilaterais de contratos, 31% a mais do que no mesmo período de 2023.
O que é a rescisão unilateral do plano de saúde?
Segundo o advogado especialista em direito à saúde João Barroso, a rescisão unilateral ocorre quando a operadora decide encerrar o contrato com o beneficiário sem que este tenha solicitado ou violado as condições previstas no acordo e, muitas vezes, sem um aviso prévio. “A ANS, que regulamenta e fiscaliza os planos de saúde para proteger o interesse público, já emitiu várias notas sobre o assunto e tem conhecimento sobre a conduta de rescisão/cancelamento sem justa causa ou sem a devida notificação prévia”.
Reclamações no Ceará
No Ceará, de 2023 a fevereiro de 2025, o canal Consumidor.gov.br registrou 26 reclamações sobre a temática. Número que, segundo a plataforma, sofreu redução em seu quantitativo médio, de maio a novembro do ano passado, por falha em uma rotina de finalização do sistema. Assim, o número de registros é maior do que o apresentado. Já no ProConsumidor, a rescisão de contrato sem solicitação/aviso prévio foi reclamada 33 vezes durante o mesmo período. No Nordeste, o número sobe para 204 no Consumidor.gov.br e 272 no ProConsumidor.
João Barroso alerta que o dado é “muito maior”. Porém, as pessoas acabam não acionando a Justiça por falta de conhecimento sobre a prática.
“Infelizmente, os planos de saúde têm adotado cada vez mais a rescisão unilateral como uma estratégia para cortar custos. Quando o beneficiário começa a demandar muitos atendimentos ou tratamentos mais caros, o plano vê isso como um ‘prejuízo’ e busca formas de findar aquele contrato. É uma prática abusiva, que fere direitos básicos do consumidor e, especialmente, coloca em risco a vida de quem mais precisa do plano: pacientes em tratamento contínuo. O plano espera justamente que, sem cobertura, a pessoa não consiga seguir com o tratamento — o que é absolutamente cruel”, opina o advogado.
O que os planos alegam
Os planos justificam a prática, conforme Barroso, afirmando que o contrato seria ‘coletivo por adesão’ e, por isso, poderia ser cancelado a qualquer momento. “Alegam também ‘quebra de contrato’ ou encerramento do vínculo com a administradora, o que não se sustenta juridicamente quando o beneficiário está em tratamento. E, por fim, alegam falta de pagamento, o que é até aceitável, mas para o plano proceder com o cancelamento por este motivo, ele precisa notificar o consumidor de maneira expressa, o que não faz e muitos desses cancelamentos são feitos sem qualquer aviso prévio, prática ilegal”, defende.
Quando o cancelamento é permitido
Barroso afirma que a lei permite o cancelamento somente em casos específicos: inadimplência superior a 60 dias (consecutivos ou não) dentro de um período de 12 meses, desde que o consumidor tenha sido notificado até o 50º dia de inadimplência ou em casos de fraude.
“Fora isso, a operadora não pode cancelar unilateralmente o plano de alguém, principalmente quando existe tratamento médico em curso. Cancelamento por ‘alto custo’ de tratamento, por exemplo, é completamente ilegal”.
“Falsos planos coletivos”
Os falsos planos coletivos são aqueles que, na prática, funcionam como planos individuais, mas são vendidos como coletivos por adesão. “O problema é que esses contratos coletivos não têm a mesma proteção legal que os individuais, o que dá brechas para cancelamentos arbitrários. Muitas pessoas nem sabem que estão contratando um plano ‘coletivo’ quando, na verdade, estão sozinhas nesse contrato — o que configura uma fraude. A Justiça já tem reconhecido esse tipo de abuso e garantido a reativação desses planos cancelados indevidamente”, esclarece João Barroso.
O que diz a lei
O advogado explica que a rescisão unilateral afronta diversos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que tratam:
- do direito à proteção contra práticas abusivas e à efetiva prevenção e reparação de danos (Art. 6º, IV e VI);
- da vedação à prática abusiva de exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva (Art. 39, V);
- da nulidade de pleno direito de cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada (Art. 51, IV)
Além disso, a Lei dos Planos de Saúde não permite, de forma expressa, o cancelamento unilateral de plano individual ou familiar por parte da operadora, exceto nos casos de fraude ou de inadimplência por mais de 60 dias (consecutivos ou não) nos últimos 12 meses, desde que o consumidor tenha sido notificado até o 50º dia de inadimplência (artigo 13, parágrafo único, inciso II).
Essa limitação à rescisão unilateral dos planos individuais também alcança as modalidades familiares de contratação, conforme decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Contudo, o STJ entende que, por falta de previsão legal, o impedimento à rescisão unilateral e imotivada de contratos não se aplica aos planos coletivos, tendo incidência somente nos tipos individuais e familiares. De toda forma, o cancelamento imotivado do contrato coletivo só pode ocorrer após a vigência mínima de 12 meses e mediante a prévia notificação dos usuários, com antecedência mínima de 60 dias.
Mesmo no caso de rescisão legal, plano deve manter cobertura durante tratamento
O STJ também entende, conforme decisão da 2ª Seção (Tema Repetitivo 1.082) que, ainda que a operadora exerça regularmente o direito à rescisão de plano coletivo, ela deve garantir a continuidade da cobertura ao beneficiário que esteja internado ou em tratamento, até a efetiva alta, desde que o titular também mantenha o pagamento das mensalidades.
Embora a tese tenha sido voltada para os casos de planos de saúde coletivos, o STJ já aplicou o mesmo entendimento aos contratos individuais e familiares.
“De maneira nenhuma o plano de saúde vai poder fazer um cancelamento enquanto o beneficiário estiver fazendo um tratamento essencial à sua saúde, independentemente de qual seja esse tratamento. Ou seja, se a pessoa está fazendo um tratamento essencial à sua saúde e porventura deixou algumas parcelas atrasarem, ou nem isso, o plano simplesmente mandou uma carta cancelando porque na cabeça do plano a pessoa está dando prejuízo para ele, isso não pode acontecer de maneira nenhuma”, destaca João Barroso.
“Isso tem como fundamento não só a boa-fé, mas também a dignidade da pessoa humana e a função social do contrato, porque com a vida você não negocia. Contrato com o plano saúde não tem o objetivo de lucrar o bolso do plano, e sim manter a sua saúde e seu bem-estar”João Barroso, Advogado especialista em direito à saúde.
Cancelamento durante a gestação
Essa ideia de manutenção da cobertura do plano de saúde rescindido ao beneficiário em tratamento também foi aplicada pelo STJ à hipótese de beneficiária gestante, quando o tribunal decidiu que, durante o período de gestação, o cancelamento do plano coletivo representaria prática abusiva, com possibilidade de risco imediato à vida e à saúde tanto da mãe quanto do bebê.
Outra limitação à rescisão unilateral de plano coletivo ocorre nos contratos empresariais com menos de 30 beneficiários, situação em que a rescisão deve ser devidamente justificada. O entendimento é de que os planos desse tipo são considerados mais vulneráveis do que os contratos coletivos tradicionais, pois os contratantes têm menos poder de negociação com a operadora. Assim, embora possível, a rescisão deve ser fundamentada, como forma de se evitarem abusos.
O tema, porém, deve voltar a ser debatido pela 2ª Seção: há recurso repetitivo destinado a definir a validade da cláusula contratual que prevê a rescisão unilateral, independentemente de motivação, dos planos de saúde empresariais com menos de 30 beneficiários.
Com informações da Secretaria de Comunicação Social do STJ.