Notícias | 29 de outubro de 2003 | Fonte: CQCS - Centro de Qualificação do Corretor de Seguros

Ainda o novo código civil: Reflexões necessárias

A Lei 10.406/02, o novo Código Civil brasileiro, continua sendo intensamente discutida por vários segmentos do mercado de seguros, propiciando debates extremamente ricos para todos os participantes. Também têm sido publicados numerosos artigos sobre o assunto, tanto na imprensa especializada como na imprensa geral, trazendo ainda melhores subsídios para o debate.
No entanto, inúmeros pontos ainda devem ser mais debatidos entre os operadores do mercado de seguros, não apenas em vista da complexidade que oferecem, mas também pela diversidade de interpretação que propiciam.
Um desses pontos que entendemos controvertido, é a redação do artigo 766 e do parágrafo único.
Determina o artigo 766 da Lei 10.406/02 que: “Artigo 767 – Se o Segurado,por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido”.
Parágrafo único – Se à inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio.”
Várias questões podem ser discutidas a partir da leitura atenta do texto de lei, mas algumas delas se destacam. A primeira delas: o corretor de seguros é representante do segurado? Declarações inexatas ou omissão de circunstâncias por parte do corretor de seguros serão capazes de gerar a perda do direito à garantia do seguro?
Existe muita controvérsia sobre o fato de ser o corretor de seguros representante ou não do segurado. Corriqueiramente, na prática do mercado, não é raro ouvirmos profissionais com muitos anos de experiência afirmarem que o corretor de seguros é representante legal do segurado. A realidade, é que não existe fundamento jurídico que sustente essa afirmação.
Representante legal é aquele expressamente provido de poderes para agir em nome de outrem, inclusive contraindo obrigações e se beneficiando de direitos. É por excelência a pessoa provida de uma procuração, com poderes para praticar atos em nome de outra pessoa, o que via de regra não acontece com o corretor de seguros.
Por definição legal, o corretor de seguros é o intermediário habilitado para atuar na contratação de seguros, aproximando um proponente que deseja contratar de uma prestadora de serviços securitários que se dispõe a ser contratada. Nessa condição de intermediário, o corretor de seguros prospecta entre as várias seguradoras uma que ofereça condições adequadas à necessidade do proponente e, uma vez tendo encontrado essa seguradora, apresenta-a ao proponente para que ele forneça os dados necessários para preenchimento da proposta de seguro.
A proposta de seguro, documento que será apresentado para a sociedade seguradora para avaliação, é assinada pelo próprio proponente que irá ser tratado como segurado a partir do momento da aceitação. A regra é que o corretor de seguros, salvo em raros casos, jamais assina a proposta de seguro, até mesmo porque não pretende ser o garantidor das informações que o proponente está prestando na proposta de seguro.
Na atualidade, inclusive, existe expressa recomendação das sociedades seguradoras para que o próprio proponente assine a proposta, em especial nos seguros de automóvel regidos pelo sistema de perfil, e nos seguros de vida onde se pede a declaração pessoal de saúde do proponente.
Portanto, parece precipitado concluir que o corretor de seguros possa ser entendido como o representante a que se refere o artigo 766 do novo Código Civil. Somente será representante se estiver munido de poderes expressos para isso, e ainda assim, poderes que deverão estar consignados em uma procuração assinada pelo proponente, futuro segurado. Entendemos que, dificilmente os Tribunais brasileiros entenderão pela responsabilidade civil do corretor de seguros na prestação de informações inexatas ou na omissão de circunstâncias, se não restar provado de forma cabal que o corretor tinha, efetivamente, poderes para prestar tais declarações.
Outro aspecto que deverá ser bastante discutido em relação a este artigo, é a redação não muito feliz escolhida pelo legislador, e que certamente poderá provocar dúvidas quando da apreciação de um caso concreto.
De fato, a primeira parte do artigo faz referência à “…declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio….”. E no parágrafo único, o mesmo artigo afirma: “Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado….”
Da forma como está redigido, o artigo permite a interpretação de que, no primeiro caso, o legislador trata da má-fé do segurado, e no parágrafo único, das hipóteses em que o segurado tenha prestado informações inexatas ou tenha omitido aspectos relevantes, mas não tenha agido de má-fé.
Se esse for o entendimento correto, surge então uma outra controvérsia. No primeiro caso, o artigo determina que o segurado que agir de má-fé “…perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido.” E no segundo caso, quando o segurado agir sem má-fé, determina o artigo que “…o segurador terá direito a resolver o contrato, ou cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio.”
Em outras palavras, o segurado que agir de má-fé perde o direito à garantia e terá que pagar o prêmio vencido, enquanto que o segurado que não agir de má-fé poderá ter seu contrato rescindido, ou terá que pagar o valor equivalente à diferença do prêmio, a critério da seguradora.
O que se pode entender por perder o direito à garantia? É a rescisão do contrato por parte da seguradora em razão da má-fé, ou significa simplesmente que o segurado, naquele sinistro, não terá direito ao pagamento da indenização?
Para tentar responder a questão, devemos nos socorrer do disposto no artigo 757 da mesma Lei 10.406/02, que está assim redigido: “Artigo 757 – Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.” (grifo nosso)
Se o contrato de seguro de conformidade com a nova redação, serve para garantir o interesse legítimo, é possível concluir que aquele que perde a garantia perde o contrato todo, ou seja, se o segurado por má-fé fornecer declarações inexatas ou omitir circunstâncias relevantes, que poderiam influir na aceitação da proposta ou no cálculo de prêmio, a seguradora poderá rescindir o contrato, deixando não apenas de pagar aquele sinistro mas também qualquer outro oriundo daquele contrato, porque o contrato não mais terá validade entre as partes.
Essa interpretação faz sentido em especial à luz do parágrafo único, que autoriza o segurador a resolver (ou seja, extinguir) o contrato ou cobrar a diferença do prêmio nos casos em que o segurado não tenha agido de má-fé.
Assim, se em casos em que o segurado não agiu de má-fé o segurador pode optar entre resolver (extinguir) o contrato ou cobrar a diferença do prêmio, nos casos mais graves em que o segurado tenha comprovadamente agido de má-fé, a perda da garantia somente pode significar a extinção do contrato de seguro além da possibilidade, por parte da seguradora de cobrar o prêmio vencido.
Em socorro desse entendimento temos ainda que: se comprovado que o segurado omitiu informações ou circunstâncias deliberadamente, de modo a ter direito a um contrato que sabidamente não seria aceito se não tivesse havido a ocultação das informações ou circunstâncias, como se pode exigir do segurador que continue a ter aquele segurado em seu rol de contratantes?
Ora, o contrato de seguro que for firmado com fundamento em omissões ou declarações falsas é um contrato que não pode prosseguir, sob pena de colocar-se em risco todo o grupo segurado que contribui com o pagamento de prêmios para constituir o fundo comum de onde sairão todas as indenizações necessárias, fundo esse que compete à seguradora administrar corretamente.
Muito melhor foi a redação adotada pelo Código Civil português, que em seu artigo 429 determina: “Toda a declaração inexata, assim como toda reticência de fato ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.”
De fato, o contrato que nasce como fruto de um vício de vontade não pode subsistir, porque apenas uma das partes tinha conhecimento de todas as circunstâncias, enquanto a outra foi levada a erro no momento em que analisou as informações.
No entanto, causa alguma apreensão que a expressão “garantia” constante do caput do artigo 766, possa ser interpretada como indenização e, nesse caso, poderemos ter entendimentos de que o contrato deve ser mantido não devendo ser paga apenas a indenização referente ao sinistro reclamado naquele momento.
Aquilo que aparentemente está claro e cristalino para os operadores do mercado de seguros pode não estar tão satisfatoriamente claro assim, o que recomenda maior discussão do assunto e redação de comentários mais aprofundados sobre esse tema, inclusive para serem encaminhados para os órgãos de proteção e defesa do consumidor, bem como para revistas jurídicas em todo o Brasil, de modo a construir uma interpretação que se adeqüe com maior precisão àquilo que efetivamente pretendeu o legislador.
Além disso, as sociedades seguradoras brasileiras ao elaborarem suas novas apólices de seguro, deverão acautelar-se para providenciar a redação de cláusulas bastante claras e precisas, que no mais possível não suscitem interpretação dúbia ou contraditória, evitando desse modo que o segurado que age de má-fé no momento em que fornece informações na proposta, possa se prevalecer disso para ser indenizado por algo que não tem direito.
De igual modo deverão acautelar-se os corretores de seguro, buscando principalmente orientar os segurados para que se esmerem no fornecimento de informações na proposta, incentivando-os para que sejam cuidadosos nesse momento que antecede a contratação, sobretudo para evitar controvérsias futuras que podem se arrastar por muitos anos no Poder Judiciário, gerando desgaste material e psicológico para todas as partes envolvidas.
Autor – Luiz Claudio Rocha Valle – Valle SC Corretora de Seguros Ltda

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